terça-feira, 8 de novembro de 2011

Luis Carlos Guimarães e 10 de seus poemas

HOMENAGEM AO POETA
LUÍS CARLOS GUIMARÃES
   Nei Leandro de Castro

Dados biográficos

Luís Carlos Guimarães nasceu em Currais Novos, interior do Rio Grande do Norte, em 1934. Viveu quase toda sua vida em Natal, onde foi jornalista, juiz de Direito e professor universitário. Nos anos 70, fez um curso de extensão universitária na Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro, e se apaixonou pela cidade, que visitava com muita freqüência. Poucos antes de morrer, Luís Carlos decidira  vir ao Rio para conhecer os recitais poéticos das noites cariocas.
Estreou em poesia em 1961, com  O aprendiz e a canção. Seguiram-se: As cores do dia, Ponto de fuga, O sal da palavra, Pauta de passarinho, A lua no espelho e O fruto maduro. Sem jamais ter saído da província natal, foi reconhecido como um dos grandes poetas do país, por escritores e poetas como Pedro Nava, Ledo Ivo, Francisco C. Dantas, Ivo Barroso,  Affonso Romano de Sant’Anna. Do seu livro Ponto de fuga, assim falou Pedro Nava: “Que poesia terrível e pungente é a sua! Todo o seu livro é uma onda me levando.”
Luís Carlos Guimarães também utilizou seu talento de poeta como tradutor. Publicou em  1997 113 traições bem-intencionadas, onde traduziu mais de 100 poetas latino-americanos e poemas de Arthur Rimbaud. A sua tradução de O corvo, de Edgar Allan Poe, é considerada de alta qualidade pelo tradutor e poeta Ivo Barroso.
Luís Carlos faleceu em Natal, no dia 21 de maio deste ano, dois dias antes de completar 67 anos. Morreu de um enfarte que ele previra num poema, Ode mínima ao enfarte do miocárdio, escrito em fevereiro de 1982.



Herança

Nos hectares da poesia
que me coube por herança,
colho safra de palavra,
armazeno provisão,
bebo de sede no poço,
como a fome no feijão.
Invento tudo que penso,
sou mago, palhaço e rei.
Tenho tudo que não tenho,
lua no fundo do copo
e o arco-íris na sopa.
De mãos dadas com Carlitos
alimento de pão e mel
os bichos todos do circo.
Pelo sem-fio da tarde
recebo urgente avegrama:
“De longe país ao Sul
vão no caminho do vento
dois passarinhos azuis.
Solicito alpiste e água
na concha de cada mão.”
A noite cobre meu sono
e da serragem do sonho
faço colchão, travesseiro.
Acordo. É ganho ou perda
ter mais um dia a viver?
Com flanela limpo os óculos
(janela dos olhos míopes)
mas não vejo mais poesia,
que sou cada vez mais turvo
diante da vida dura
e do mundo tão escuro.


Canção

No seu bordel em languidez sem alarde
a poesia se abisma toda em amor.
A soluçar baixinho ao cair da tarde
envolve em lençóis de seda sua dor.


Nona

Quando não mais esperava, chegou
com a doçura de uvas maduras.
Jorro de luz. Estrela-d’alva. Lua
refletida no rio, levada para o mar.
Crença me acenando com a proteção
do céu. Janela aberta à paisagem
que se vê pela primeira vez.
Macia como lã, sua voz na penumbra.
Canto de pássaro tecendo a manhã.


Segredo

No tom mais velado
conto o segredo
ao fundo do poço.
Como se fosse gravada
com um ferro em brasa,
nunca se apagará
no rosto da água
a cicatriz da poesia.


O pêssego

Por si só, como fruto,
não sugere seu sabor.
Para mim que desfruto
de sua forma, sua cor,
e com mão aliciante
sinto a polpa veludosa,
não penso no gosto diante
da penugem de tons rosa.
De repente, perplexo,
vejo um ventre de mulher:
sua vulva, o morno sexo
que está a se oferecer.
O pêlo da pele beijo,
mordo a carne sumarenta,
se me acende um desejo
que não se dessedenta.
A fome da minha língua
agora está saciada,
a do desejo não míngua,
tem que ser adiada.


Epitáfio

Aqui jaz um menino azul
tragicamente morto
num desastre de velocípede.


Poema soturno

Convém às pessoas soturnas
só trajar roupas escuras
(nem em festivo domingo
uma cor que lembre o dia).
Na lapela, ao lado esquerdo,
tarja de luto perpétuo;
presa à gravata noturna,
uma papoula sombria.
Ter oculto na algibeira
um relógio que parou
num dia de sexta-feira,
13, na hora em que seu corpo
a morte virá buscar.
Com ar de quem vai à forca
de capa e chapéu fúnebres,
com negros sapatos rotos
nas quedas e descaminhos,
seguir todos os enterros,
a alça do caixão na mão.
Mudar a verde esperança
pelo roxo das mortalhas,
cultivar flores malditas,
reinventar desesperos.
Gravar na pedra do espelho
a face podre do mangue,
tingir as mãos de vermelho
que é a cor da cor do sangue.
Com olhos sempre inclinados
escavar o duro chão
- os  sete palmos de terra -
herança de Deus aos homens
desde o tempo da criação.


Sagração do verão

De repente a mulher desabrochou nua
saindo do mar, pois a água não a vestia,
antes a desnudava, fazendo a sua
nudez mais nua à dura luz que afia
seu gume no sol da manhã que inaugura
o verão. Dezembro só luz reverbera
em seu corpo, doura-lhe as coxas, fulgura
nas ancas, no dorso ondulado de fera.
Fera que guarda no ventre um colmeia
com a flor em brasa do sexo que ateia
fogo ao meu desejo e tanto me consome
a vulva, gruta, rosa de pêlos – que nome
tenha – que desfaleço como se em sangue
me esvaísse morrendo de amor. Exangue.


Noturno

Toma meu amor
bebe até a última gota o vinho das estrelas
e olha para a noite desenrolada no céu
e vem e vem e deixa que eu assista à mutação dos teus olhos
na cor de mel ouro antigo chá e telha vã
enquanto não chega a hora de amar
desdobrar todos os minutos como pedras preciosas de um colar
quando minha boca passeia o teu corpo assustado
e meus dedos ciciam aos pêlos úmidos do teu sexo
e eu ávido cavalo te cavalgo montaria do meu amor.


CANÇÃO URBANA

O que me chama a atenção é um homem sozinho numa mesa,
nos seus cinqüenta anos bem morridos,
a entornar seu chope silenciosamente:
o homem do paletó cor de goiaba.
Necessariamente funcionário público,
na vizinhança da obesidade e do enfarte,
o homem do paletó cor de goiaba
tem cinco filhos, três netos,
uma mulher de barriga caída e varizes nos braços e nas pernas,
um apartamento de dois quartos no 12o andar do Edifício Flor de Laranjeiras
(financiado em 25 anos, com correção monetária, pelo BNH),
calos na sola do pé direito,
dentes cariados,
fígado inchado,
acessos semanais de asma brônquica,
uma sogra que encarna o dragão vomitador de fogo,
uma acentuada hipermetropia na visão esquerda
e bolsos furados.
E mais:
no morrer de cada dia,
o homem do paletó cor de goiaba
tem os ouvidos rasgados pelo barulho do trânsito,
sua sangue poluído de asfalto na repartição,
nas filas de ônibus e do INPS.
Entornando silenciosamente o seu chope,
o homem do paletó cor de goiaba
parece um boi.
Um boi.
Não o boi que pasta no campo,
mas o boi que vão levando ao matadouro.